terça-feira, 21 de abril de 2009

Vagabundagem Universitária Começa no Trote







Todo começo de ano é a mesma cena: calouros de universidades, as cabeças raspadas e as caras pintadas, incitados ou obrigados por veteranos, ocupam os sinais de trânsito pedindo dinheiro aos motoristas. É uma das formas do chamado ‘trote’, o mais artificial dos ritos de iniciação da mais artificial das instituições contemporâneas – a universidade.O trote nada mais é do que o retrato da alienação em que vivem esses adolescentes das classes favorecidas. Com tempo de sobra, eles não têm em que empregar tanta liberdade.Ou querem dizer que essas simples caras pintadas têm qualquer simbologia semelhante à das máscaras de dança das tribos primitivas estudadas por Lévi-Strauss?Para aquelas tribos índias, as máscaras eram o atestado da onipresença do sobrenatural e da pujança dos mitos. Mas esses adolescentes urbanos não têm tanta complexidade. Movido a MTV e shopping centers, o espírito deles vive nas trevas. A ausência de conhecimento e saber limitá-lhes os desejos e as atitudes.Em tempos mais admiráveis, ou em sociedades mais ideais, essa massa de vagabundos estaria ajudando a cortar cana nos campos, envolvidos com a reforma agrária, em programas de assistência social nas favelas ou com crianças de rua, ou mesmo explorando os sertões e florestas do país, como faziam os estudantes do extinto projeto Rondon.Hoje, mais do que nunca, há uma tendência – característica da mentalidade das elites da economia capitalista – de adulação da adolescência, de excessivo prolongamento da mesma e da excessiva indulgência para com esse período tido como ‘de intensos processos conflituosos e persistentes esforços de auto-afirmação’.Desde adolescente, sempre olhei com desprezo esse tratamento que se pretende dar à adolescência (ou pelo menos à certa camada social adolescente): um cuidado especial, semelhante ao que se dá às mulheres grávidas. Pois é exatamente esse pisar em ovos da sociedade que acaba por transformar a adolescência num grande vazio, numa gravidez do nada, numa angustiante fase de absorção dos valores sociais e de integração social.Se os adolescentes se ocupassem mais, sofreriam menos – ou pelo menos amadureceriam de verdade, solidários, ocupados com o sofrimento real dos outros.Mas não, ficam vagabundando pelos semáforos das cidades, catando moedas para festas e outras leviandades. E, o que é pior, sentindo-se deuses por terem conseguido decorar um punhado de fórmulas e datas e resumos de livros que os fizeram passar no teste para entrar na universidade.A mim - que trabalhava estudava ao mesmo tempo desde os 15 anos – causava alarme o espírito de vagabundagem que, cultuado na adolescência, vi prolongar-se na realidade alienada de uma universidade pública.Na Universidade de São Paulo, onde estudei, os filhos dos ricos ainda passam anos na hibernação adolescente sustentada pelo dinheiro público.






Escrito por: Marilene Felinto



Fonte: Folha de S. Paulo 25/02/1997

sábado, 18 de abril de 2009




Pensar é transgredir


Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos – para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos.
Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.
Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: “Parar pra pensar, nem pensar!”
O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador.
Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.
Sem ter programado, a gente pára pra pensar.
Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas.
Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.
Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.
Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.
Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.
Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada.
Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada.
Muitas vezes, ousada.
Parece fácil: “escrever a respeito das coisas é fácil”, já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.
Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.
Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.
Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.


Lya Luft